O governo do Rio de Janeiro superou o próprio recorde e matou 64 pessoas em uma única operação policial
A chamada Operação Contenção tinha como objetivo cumprir uma série de mandados de prisão. Sabe-se que o Complexo do Alemão e a Vila Cruzeiro funcionam como uma espécie de QG do Comando Vermelho e que, segundo informações, estariam abrigando membros da facção vindos de outros estados.
No entanto, apesar da dimensão e da gravidade da ação, o governador não solicitou apoio da Força Nacional nem da Guarda Nacional. Tampouco emitiu qualquer pedido formal de assistência ou comunicado prévio sobre o que estava prestes a acontecer. Optou, ao contrário, por agir por conta própria, num amadorismo institucional que revela não apenas despreparo, mas também descaso com a vida da população periférica.
Essa postura não é novidade. A truculência do governo da Guanabara é antiga e se repete como um roteiro que o Estado se recusa a reescrever. Basta lembrar o caso da Favela Nova Brasília, quando duas operações policiais realizadas em 1994 e 1995 deixaram 26 mortos e três mulheres vítimas de violência sexual. O episódio levou o Brasil à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Estado brasileiro por violações graves ao direito à vida, à integridade pessoal e às garantias judiciais.
Na sentença, a Corte determinou medidas de reparação, protocolos de investigação, políticas de redução da letalidade e mecanismos de controle do uso da força. No entanto, quase trinta anos depois, as recomendações continuam pendentes. Assim, o ciclo de sangue se repete, alimentado pela impunidade e pela ausência de responsabilização efetiva dos agentes do Estado.
Como advogada criminalista, vejo todos os dias o quanto é difícil sustentar a legalidade dentro de um Estado que normaliza o uso abusivo da força. O meu trabalho de atuar na defesa de corpos presos por tráfico de drogas, muitas vezes, parece o esforço de enxugar gelo. Afinal, de um lado, o Estado prende jovens negros e periféricos em massa; de outro, se autoriza a matar dezenas em nome de uma suposta “ordem pública”.
A verdade é que a linha entre o governo “legítimo” e o crime organizado no Rio de Janeiro é cada vez mais tênue. Neste sangrento e caótico 28 de outubro de 2025 houve barricadas erguidas em territórios historicamente dominados por milícias. Esses grupos, que em tese surgiram para combater o tráfico, transformaram-se em um poder paralelo, sustentado por agentes públicos, armas oficiais e um silêncio institucional que naturaliza sua existência.
Dessa forma, torna-se impossível falar em política de segurança quando o Estado se confunde com as estruturas que deveria combater. Não há legitimidade em matar 64 pessoas e chamar isso de operação bem-sucedida.
Além disso, é importante reconhecer que todos já sabemos do poder bélico das facções. Também sabemos que a crise de segurança no Rio é profunda, complexa e digna de um buraco negro. Diversos especialistas em segurança pública vêm alertando há anos para o fato de que a ausência histórica do Estado nas favelas e a aposta constante na lógica punitivista substituem políticas de inteligência, de prevenção e de cidadania.
Diante disso, sou capaz de apostar que este dia sangrento também vai parar na Corte Interamericana daqui a alguns anos. Provavelmente, receberemos novas condenações, novas recomendações e novos relatórios de “não cumprimento integral”. Assim, o ciclo seguirá, como sempre seguiu.
Enquanto isso, nas vielas e nos becos, mães continuarão enterrando filhos, e o Estado seguirá contabilizando corpos como se fossem estatísticas de sucesso. A necropolítica do Rio não é uma exceção, mas sim o próprio projeto.
E nós, que ainda acreditamos na força do direito e na humanidade da justiça, seguimos tentando lembrar o óbvio: não existe Estado democrático de direito onde o Estado é quem mais mata.
Fontes: https://www.gov.br/mdh/pt-br

Jéssica Nascimento, advogada criminalista

