Andréia Ferreira dos Santos é apanhadora de flores. Criada pela avó no Quilombo Raiz, ela cresceu colhendo as “sempre-vivas”, que são mais de 300 espécies de plantas do Cerrado em Minas Gerais. Elas servem para compor buquês ornamentais de longa duração.
Após colhidas e secas, essas flores são fundamentais para comunidades tradicionais da região. Por isso, foram reconhecidas pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, FAO, como o primeiro Sistema Importante do Patrimônio Agrícola Mundial brasileiro.
Principal fonte de renda da comunidade
Andréia é parte da quinta geração do quilombo, que foi fundado pela sua trisavó. Ela conta que sua identidade é incrustada na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais. Ali, ele e outros 100 quilombolas cultivam a “roça de toco” (sistema de cultivo com rodízio de culturas) e criam animais nos quintais.
A principal fonte de renda da comunidade, contudo, advém da coleta das flores. De acordo com ela, em cada safra, que varia conforme a espécie, uma pessoa consegue apanhar até uma tonelada de flores, vendidas entre R$ 25 e R$ 70 reais, o quilo.
Mas a realidade mudou a partir dos anos 2000, com o processo de modernização agrícola no país. O cultivo de eucalipto chegou à região, gradualmente substituindo as florestas, e as flores, pela monocultura.
Artesanatos e capim-dourado
Os quilombolas foram perdendo acesso ao território à medida em que o espaço para a colheita era reduzido entre as novas fazendas.
A comunidade partiu então para o desenvolvimento de artesanatos. Andréia Ferreira dos Santos conta que “o impacto cultural e econômico foi muito grande. Uma forma de continuar o nosso modo de vida foi agregar valor”.
Foi assim que, desde 2006, o trabalho manual de capim-dourado do Quilombo Raiz chegou a feiras em todo o Brasil, e até em outros países, na forma de pulseiras, brincos, luminárias e diversos objetos.
Preocupada com a juventude
Isso não significa que a atividade tradicional foi abandonada. “A coleta de flores continua sendo importante e é passada de geração à geração, mesmo espremidos no território e sem acesso aos campos de coleta tradicionais”, ressalta a líder, que se inquieta em relação ao futuro.
“Eu fico um pouco preocupada com a juventude. Se a gente não consegue colher de forma positiva, que mantenha os jovens dentro do território, com suas próprias rendas, é uma dificuldade. O território é muito importante para que continue a cultura e os modos de vida tradicionais”, destaca.
Com o objetivo de articular a defesa dos direitos da comunidade, a mestre em estudos rurais entrou para os movimentos sociais em 2014. Ela integrou a Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas. “Dentro da comunidade, outros jovens e eu somos lideranças. Foi onde eu me encontrei nesse processo. Somos muito ativos em buscar acesso a políticas públicas”, explica.
Primeiro Patrimônio Agrícola Mundial do Brasil
A partir dessa mobilização, em 2015, a comunidade recebeu oficialmente do governo brasileiro o título de quilombo e, em 2018, a consagração como apanhadores de flores sempre-vivas. Dois anos depois, chegou o título de Patrimônio Agrícola.
Além do valor simbólico, os reconhecimentos conquistados têm o potencial de gerar resultados concretos. Segundo ela, a articulação nacional e internacional deu visibilidade à comunidade, o que contribuiu para barrar a entrada da mineração na região, evitando a contaminação da água nos campos de colheita.
“O reconhecimento da ONU foi bem importante e impactante. A comunidade entende que é muito mais importante ter água do que ter dinheiro. Nós já vivemos do que temos até hoje e queremos continuar assim”.
Ação das mulheres e geração de renda
A organização da comunidade também possibilitou que o Quilombo Raiz se tornasse um fornecedor do Programa Nacional de Alimentação Escolar e começasse o processo para integrar o Programa de Aquisição de Alimentos, duas iniciativas de compras públicas oriundas da agricultura familiar.
Para a coletora de flores, o acesso às políticas públicas é fundamental para manter o território: “não basta pensar na cultura, a gente tem que pensar na geração de renda também”.
Com muitas conquistas até aqui, a comunidade segue mobilizada para garantir seus direitos, com destaque para a ação das mulheres. E lideranças como ela são a maioria: “é uma rede de mulheres trabalhando para a comunidade se manter. São elas que estão mais presentes nos quintais e na luta. A associação é composta só por mulheres. Elas estão em todos os contextos”.
O que são os Sipams?
O Programa de Sistemas Importantes do C, Sipam, lançado pela FAO em 2002, é uma iniciativa do Escritório de Mudanças Climáticas, Biodiversidade e Meio Ambiente. Ele reconhece e apoia sistemas agrícolas tradicionais que combinam conservação da biodiversidade, patrimônio cultural, ecossistemas resilientes e meios de subsistência sustentáveis. Com 89 sistemas em 28 países, o Sipam exemplifica o compromisso da FAO em transformar os sistemas agroalimentares, integrando o conhecimento tradicional com práticas inovadoras para enfrentar desafios globais como as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade e a pobreza rural.
Fonte ONU