Cultura é o que um povo repete até parecer natural, é o modo de viver, de sentir, o comportamento. Está nas regras invisíveis e nas violências visíveis. Se assim é, o Brasil é um país cuja cultura foi construída sobre a repetição da morte —uma coreografia que se ensaia há séculos e que, agora, o Estado transforma em espetáculo de “segurança”.
A operação disfarçada de massacre que matou mais de cem pessoas no Rio de Janeiro, a mais letal da história, é o enredo padrão de um país que trata a barbárie como parte da paisagem.
A violência é uma linguagem nacional, fluente, que dispensa tradução. Ela se manifesta com naturalidade na boca do governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, que festeja os mortos como troféus de um dia de “trabalho bem feito”.
Está no pastor da televisão que prega entre anúncios de sangue e milagres. Está na emissora internacional que se cala diante do luto periférico, preferindo exibir guerras estrangeiras em vez da guerra diária travada dentro do Brasil.
Os conflitos em Gaza, na Ucrânia ou na Somália não deveriam sensibilizar quem vive num território de favela no Brasil, não faz sentido, não temos tempo para chorar os mortos do outro lado do oceano. O mais cruel é perceber que o país aprendeu a consumir essa violência como entretenimento —e, no fim, todo esse enredo vira disputa política. Entre direita e esquerda, não há neutralidade quando o Estado celebra a morte.
O país se acostumou a contar corpos como quem atualiza bilheteria. “A maior operação da história”, diz o governador, com o mesmo orgulho de quem anunciaria um recorde de público num filme como “Tropa de Elite” ou “Cidade de Deus”. Mas quantos corpos cabem na chamada do Jornal Nacional antes de o país reconhecer que não há mais roteiro possível? Há filmes de guerra com menos mortos do que o Rio de Janeiro produziu em um único dia e, nos filmes, pelo menos alguém grita “corta”.
Repetimos o massacre, o aplauso, o silêncio. Repetimos até que o horror pareça inevitável. Talvez seja por isso que o cinema brasileiro, tantas vezes, parece realismo puro —porque a realidade já é ficção demais. Se cultura é o que um povo cultiva, o Brasil está cultivando o costume de matar, e, enquanto isso, os mortos da Penha e do Alemão seguem sem crédito nos jornais, sem nome nas estatísticas, sem final no roteiro.
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Fonte ==> Uol


