Conhecido por ser um ator que reúne a classe artística para discutir reivindicações, Antonio Fagundes, 76, afirma que ainda falta muito para o Brasil reconhecer os direitos dos intérpretes.
“O Plínio Marcos dizia que ator americano morto ganha mais do que brasileiro vivo”, diz. “Essa é uma discussão que precisamos manter viva, até para entender qual é a nossa participação nesse mercado, a dignidade que devemos ter diante do trabalho.”
De volta à Globo após seis anos, Fagundes conseguiu negociar um contrato em que grava três dias por semana e usa o resto do tempo para fazer teatro. Ele vai participar da próxima novela das nove, “Quem Ama, Cuida”, de Walcyr Carrasco, além de outros projetos.
Fagundes é o próprio produtor de seus espetáculos, ao lado da mulher, Alexandra Martins. Não é contra o financiamento das artes, mas vê problemas nos formatos atuais de patrocínio e defende a independência artística. Também afirma que o Brasil nunca teve política cultural.
Ele sempre conciliou o trabalho na TV, no cinema e no teatro e já fez de tudo um pouco, inclusive filmes classificados como chanchada. Para ele, as produções eram, na verdade, o jeito brasileiro de criar musicais no cinema.
O ator não planejou nenhuma comemoração especial para os 60 anos de carreira, marcados pela estreia no Teatro de Arena, com a peça “A Farsa do Cangaceiro, Truco e Padre”, de Chico de Assis, em 1966.
“Comemoramos aqui todo dia. Saímos para jantar e brindamos. Então, vai ser um monte de comemoração o ano que vem”, diz o ator, em entrevista concedida em Portugal, onde fez temporada de casas lotadas com a peça “Dois de Nós”, de Gustavo Pinheiro, mais um sucesso de sua carreira. O espetáculo está perto de alcançar a marca de 200 mil espectadores.
“Dois de Nós” reestreia em São Paulo, no Tuca, em janeiro. Aí virão outros jantares e outros brindes com o elenco, formado por Christiane Torloni, Thiago Fragoso e Alexandra Martins.
Ao trabalhar em teatro, TV e cinema ao mesmo tempo, o senhor tem a impressão que os 60 anos de carreira passaram rápido?
Tenho um currículo enorme, cheio de coisas. Parece que foram mais de 70, porque 60 anos não dariam para fazer aquilo tudo. O teatro é uma coisa que eu nunca parei de fazer. Já parei de fazer TV, cinema, mas o teatro foi ininterrupto. E teve períodos da minha vida que eu estava nos três veículos ao mesmo tempo. Fora tudo que a gente faz na profissão, como audiobooks, documentários, dublagens. Tem um mercado bastante aberto e eu sempre gostei muito de me exercitar em qualquer veículo que aparecesse.
Como está sendo o retorno à Globo após seis anos de afastamento?
Está sendo perfeito, ótimo. Volto para uma novela do Walcyr [Carrasco] e adoro o trabalho dele. Nós tivemos uma experiência muito boa em “Amor à Vida”, com um personagem que ele foi desenvolvendo ao longo da trama [o médico César Khoury]. O personagem era para morrer no capítulo 40, e eu acabei ficando até o fim, o que resultou em um dos finais mais bonitos de novela da Globo. E com a Amora [Mautner, que vai dirigir a próxima novela], eu trabalhei quando ela ainda era assistente de direção. Vai ser um reencontro gostoso. Tenho 44 anos no grupo, estou sempre com um pedacinho do coração lá.
A que atribui o desejo da Globo em tê-lo de volta?
Eu acho que a TV aberta passou por uma reformulação. Eles tiveram que reestruturar administrativamente e agora estão recomeçando. Ao mesmo tempo, foi bom para todo mundo que conseguiu se espalhar fora da Globo. Eu fiz streaming, TV Cultura, cinema. A vida não parou por ter saído da Globo. Mas, ao mesmo tempo, é uma grande emissora e, na TV aberta, é a maior produtora. Fazer algum trabalho lá é importante para qualquer um. Gravarei também um longa-metragem e eles farão o licenciamento de um filme que é produção minha, “Contra a Parede”, de 2018.
Conseguiu negociar a liberação de alguns dias da semana para seguir fazendo teatro?
Isso sempre foi um acordo meu com a Globo. Desde que comecei a fazer novela, nunca parei de fazer teatro. Embora eu goste muito de TV, e tive a sorte de fazer grandes personagens, eu não queria parar de fazer teatro. O teatro é a pátria do ator, é lá que ele se desenvolve.
O senhor é um ator que sempre teve uma postura política em relação à classe artística, unindo colegas, reivindicando direitos. Por que faz isso?
Acho que a gente tem poucos direitos no Brasil. A gente ainda está discutindo os direitos dos intérpretes, que no mundo inteiro funcionam, menos no Brasil. O Plínio Marcos dizia que um ator americano morto ganha mais que um brasileiro vivo. Essa é uma discussão que precisamos manter viva, até para entender qual é a nossa participação nesse mercado, a dignidade que devemos ter diante do trabalho.
Ser um artista que reivindica direitos dentro da TV Globo trouxe contratempos?
Eu sempre tive muito diálogo lá dentro e sempre consegui com que a gente realmente conversasse. Teve um período de uns cinco, seis anos, em que fazíamos reuniões na minha casa. Começou com atores da Globo, mas depois vieram de outras emissoras. A gente se reunia para discutir a nossa realidade. A alta diretoria da Globo também fazia parte. Nós recebemos o Boni, a Mônica Albuquerque, o Sílvio de Abreu.
Essa postura está relacionada ao seu início de carreira no Teatro de Arena?
O Arena falava mais do Brasil, não falava muito da classe. Falava mais da realidade brasileira. Mas, é claro, eu entrei no Arena moleque, tinha de 16 para 17 anos, posso dizer que a minha formação como cidadão se deu lá, com gente maravilhosa como o [Gianfrancesco] Guarnieri, o [Augusto] Boal, o Paulo José, o Juca de Oliveira, o Chico de Assis. Eu não tinha nem carteira de identidade ainda, mas já fazia parte das discussões sobre a realidade brasileira.
Como foi seu começo lá?
Foi em um núcleo de teatro experimental, com uma peça do Chico de Assis [“A Farsa do Cangaceiro, Truco e Padre”]. Costumo brincar que foi o primeiro cheque que recebi. Antes eu tinha feito teatro estudantil e um dos diretores me convidou para fazer teatro infantil no Arena. Não era bem o que eu queria, já na época eu era metidinho. Mas falei ‘bom, pelo menos vou estar exercitando’. Naquela época, todos os artistas do Arena tinham filhos pequenos e me conheceram. E fui convidado para fazer parte do elenco fixo.
Como foi a passagem do teatro para a TV?
Demorou dez anos. Eu gostaria de ter entrado mais cedo, porque sempre gostei de me exercitar como ator. Mas ninguém me chamava. Antes, em 1969, participei de um teleteatro na TV Cultura, dirigido pelo Alfredo Mesquita, que era o diretor da Escola de Arte Dramática de São Paulo. Era eu, a Miriam Muniz e o Elias Gleizer numa adaptação de um conto do Dalton Trevisan. Depois levou mais uns três ou quatro anos para eu entrar na TV Tupi.
Os companheiros do Arena lidaram bem com essa sua opção?
Quando eu fui para a TV, esse preconceito já havia sido quebrado pelo Guarnieri e por uma turma que já estava fazendo muito sucesso. Mas sei que eles sofreram. Mas a teledramaturgia brasileira tem uma coisa curiosa, sempre foi muito atuante politicamente. Embora a TV, de uma forma geral, seja um veículo de direita, quem fazia era de esquerda, como o Ferreira Gullar, o Dias Gomes. As novelas discutiam uma realidade que às vezes o teatro não conseguia, porque a censura não deixava.
O senhor produz e protagoniza grandes sucessos no teatro. Porém, até mesmo na classe artística, às vezes suas peças são chamadas de comerciais. O que acha disso?
Acho que essas pessoas que falam isso não conhecem a minha carreira, não devem ter acompanhado. Eu montei Gerald Thomas, montei “Cyrano de Bergerac” —uma peça que não é comercial. Posso dizer que rompi barreiras. Fiz semiologia no teatro, fiz Roland Barthes. Fiquei dois anos em cartaz e tive 250 mil espectadores com esse texto [“Fragmentos de um Discurso Amoroso”]. Ninguém pode dizer que o Barthes é comercial.
Para mim, comercial é tudo que você põe à venda. Esses colegas que dizem que o teatro que eu faço é comercial, e o deles não, talvez não tenham entendido o significado da palavra. Essas pessoas deviam agradecer, porque eu estou conquistando o público para eles. Enquanto eu continuar mantendo os meus espetáculos lotados, vai sobrar público para quem quer ver um outro tipo de teatro. E quem sabe seja esse teatro que eles estão fazendo.
Ainda mantém o hábito de ver quase todas as peças em cartaz?
Gosto de teatro e começo sendo público. Às vezes brigo com colegas porque eles não fazem sessões extras. Estou sempre em cartaz e fica difícil. Corro atrás dos colegas quando eles fazem um horário diferente, um dia diferente. É uma coisa que vou com o maior prazer.
Uma briga constante é sobre a pontualidade do público. Já lidou com muitos processos judiciais por não permitir a entrada fora do horário?
São muitos, mas isso é a ponta do iceberg. Na verdade, me dedico intensamente à comunicação com o público, desde a escolha do texto. Eu quero que o público saia do teatro modificado. Quero que entenda, que se emocione. E essa vontade de comunicação inclui um monte de outras coisas, inclusive o próprio processo de ensaio. Abro os meus ensaios para o público desde a primeira semana. Na peça “Dois de Nós”, tivemos 2.000 mil pessoas acompanhando a criação.
Começo os espetáculos rigorosamente no horário marcado porque quero respeitar as pessoas que tiveram um trabalho imenso para sair de casa e chegar na hora. Antes do espetáculo, faço uma visita aos bastidores, que abro para o público. Quero que conheçam não só aquela caixinha mágica, mas o que tem por trás também. Como funciona, quantos funcionários tem. Não são só atores. Tem a luz, o som, quero que conheçam essa infraestrutura. Depois do espetáculo, ainda volto para o palco e a gente tem um bate-papo com a plateia. Ter que começar na hora é um pontinho de nada dentro de todo esse acarinhamento.
Mantém a decisão de não recorrer às leis de incentivo e aos editais de fomento?
Sim. Acho que o patrocínio é necessário, principalmente num país como o Brasil, de dimensões continentais, onde há pelo menos 4.500 municípios sem teatro. Mas, ao mesmo tempo, acho que essa cultura deveria ser estatal e não governamental. Um dos erros que a gente enfrenta com o patrocínio é que ele é governamental. E aí a cultura não vai para frente. Se a gente não aprender a sobreviver sem depender de um ou de outro governo, corremos o risco de fechar as portas.
O que acha da política cultural do governo Lula?
Desde 1500, nunca tivemos nenhuma política cultural, porque a política cultural precisa de dinheiro. Se você tem 0,6% de dotação orçamentária para o Ministério da Cultura, mal dá para pagar os funcionários, que dirá investir. E quanto mais investir em cultura, mais terá retorno financeiro, com uma movimentação na sociedade de pelo menos 3% do PIB. Só para ter um parâmetro, a indústria automobilística movimenta 2%. É importante que a gente tenha patrocínios, que esse dinheiro volte. Agora, eu particularmente, prefiro a minha independência.
Uma peça de teatro, quando é bem-sucedida, realmente tem retorno financeiro?
Tem que pensar nisso desde o começo. Não pode gastar dinheiro que, mesmo lotando, você não consegue ter de volta. Essa conta tem que ser feita. É uma conta que parece que ninguém no país faz, né? Todo mundo gasta, mas não sabe de onde vai tirar o dinheiro.
Como lidou, ao longo da carreira, com a fama de galã?
Nunca liguei muito para isso. Primeiro, porque eu sei que a gente vive nesse círculo. Quando faz sucesso, tem que colocar um pontinho preto na ponta do nariz. Então, algumas pessoas, quando usam esse termo, é para diminuir o trabalho como ator. Como se fosse simplesmente um homem bonito e mais nada. Mas como eu nunca me achei bonito, sempre achei que era um engano das pessoas.
Mas alguns papéis não foram realmente sensuais? O senhor foi o primeiro ator a aparecer de cueca na TV.
Pois é. E fui o primeiro ator a fazer o “Cyrano de Bergerac” também, mas disso ninguém lembra. Acho que conseguimos imprimir uma certa sensualidade em alguns personagens, porque também somos capazes do mau-caratismo. Um ator pode ser Deus, pode ser narigudo, pode ser feio, pode ser o que quiser.
Em uma autobiografia, tem algum episódio da sua vida artística que destacaria no primeiro capítulo?
É a terceira vez que eu cito o “Cyrano de Bergerac” e não é à toa. Foi um trabalho extremamente importante. Era um desafio como ator. Eu era, na época, o único do mundo que tinha feito o Cyrano com a idade dele. O personagem sempre foi feito por atores mais velhos que esperavam chegar aos 60 anos, e eu tinha 35. Foi marcante também no sentido de que era a primeira superprodução que eu fazia sem patrocínio. Eram 36 atores, 24 técnicos, num teatro de 1.200 lugares, que tinha que lotar diariamente, pelo menos durante quatro meses, para pagar a produção. Consegui. Depois, resultou em um espetáculo maravilhoso da Companhia Estável de Repertório, mantida dez anos no Teatro Cultura Artística. Era uma coisa que as pessoas já não estavam fazendo mais na época, espetáculos lotados de quarta a domingo. Foi quando eu entendi plenamente que a minha independência era possível.
Raio-X
Antonio Fagundes, 76, é ator e produtor de teatro, cinema e televisão. Na TV, fez personagens de grande sucesso em novelas e séries como a primeira versão de “Vale Tudo”, “Renascer”, “O Rei do Gado”, “Amor à Vida” e “Carga Pesada”. No teatro, teve a Companhia Estável de Teatro durante dez anos e está em cartaz há seis décadas com espetáculos que atraem milhares de pessoas. Também fez mais de 50 filmes para o cinema e o streaming.
Fonte ==> Uol


